Em meio à Modernidade, um pensamento universalista tentou firmar-se em todo o mundo mediante relações desiguais entre sujeitos, grupos e territórios geográficos. Uma única forma de viver foi alçada como legítima e verdadeira, representando os efeitos do curso civilizatório. Essa dinâmica levou à consumação de inúmeras vidas, experiências foram dispersadas, conhecimentos exterminados e determinados modos de ser apagados. A educação institucional e a ciência serviram a esse programa de caráter colonial, patriarcal e capitalista, de tal modo que é impossível não reconhecer suas marcas no cotidiano. A pedagogia moderna é herdeira desse legado pautado na ideia de progresso por meio da razão e do desenvolvimento científico com a promessa da formação de um suposto sujeito autônomo, consciente e, sobretudo, livre. Por fazer defesa às diferenças, esta pesquisa se propôs a emperrar, a subverter, a fissurar, mesmo que provisoriamente, esse sistema. Para isso, apropria-se de debates, como os promovidos pelo grupo latino-americano Modernidade/Colonialidade a respeito do pensamento decolonial, por Boaventura Sousa Santos e as epistemologias do Sul, e pelo indiano Homi Bhabha sobre o pós-colonialismo, para identificar se e como o repertório discente é abordado e valorizado no currículo cultural da Educação Física. Sabendo que tal perspectiva assume como princípio éticopolítico o reconhecimento da cultura corporal da comunidade, o trabalho promovido por dois docentes, atuantes em escolas públicas da zona sul da cidade de São Paulo e que declaram colocá-la em ação, foi observado e transformado em objeto de discussão com os próprios regentes e também com os estudantes, para identificarmos como se dava esse processo de valorização e legitimação dos saberes discentes. As observações foram registradas em diário de campo e as conversas gravadas em áudio e transcritas. Os materiais produzidos, quando submetidos à análise cultural e confrontados com os referenciais supracitados, indicam que as ações pedagógicas que caracterizam a Educação Física cultural se aproximam do pluriversalismo e estão em semelhança ao lema ‘andar perguntando’ do Movimento Zapatista, dado que, ao longo de toda a tematização, garantem as condições necessárias à negociação e ao diálogo. Os estudantes percebem o ambiente aberto para a escuta, o que os motivam a expor com mais intensidade suas gestualidades e saberes. Tal constatação permitiu inferir mais um princípio que agencia os professores – favorecer a enunciação dos saberes discentes – pois, além de prestigiarem nas diversas cenas pedagógicas os conhecimentos de sujeitos e grupos alvos do fascismo epistemológico, das colonialidades, fazem uso de problematizações para provocar abalos, desfamiliarização, em concepções ligadas a esses processos. Assim, os saberes tecidos na luta diária a favor das diferenças se aquecem de variados afetos, emoções, ou seja, ficam tomados pelo corazonar, permitindo a criatividade, a disposição para correr riscos, a poética da existência.

Palavras-chave: conhecimento; cultura; cultura corporal; currículo; Educação Física.

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